Como talvez você também tenha pensado, eu me perguntei: como os cantos de outras espécies de aves variam ao longo de suas distribuições? Curiosamente, dois conjuntos de hipóteses são comumente apresentados na literatura científica para explicar o padrão de complexidade do canto das aves distribuídas por amplas escalas geográficas: (1) hipóteses ecológicas e (2) hipóteses de seleção sexual (Najar & Benedict 2019). As hipóteses ecológicas predizem o aumento da complexidade do canto das aves à medida que a disponibilidade do espaço acústico (i.e., a janela de frequência utilizada pelas aves para se comunicar) se torna maior, e/ou as características da vegetação se tornam menos atenuantes aos sons produzidos pela fauna. Por exemplo, onde uma ave específica coexiste com mais sons capazes de causar interferência no seu sinal acústico, como vocalizações de outros animais ou ruídos urbanos, existe uma menor disponibilidade do espaço acústico para essa ave específica, o que potencialmente limitaria a evolução de cantos complexos (veja Weir et al. 2012; Najar & Benedict 2019). Por outro lado, mas com predições similares, as hipóteses de seleção sexual predizem uma correlação positiva entre a complexidade do canto e a intensidade de seleção sexual. Veja bem, imagine aves que ocorram em locais com forte sazonalidade climática, como regiões de climas temperados em latitudes maiores. Nesses locais, a quantidade ideal de recursos para as aves se reproduzirem com sucesso deve estar disponível somente em um curto período de tempo do ano (Wyndham 1986). Sob tais condições, onde as aves têm menos tempo para se reproduzir – em comparação com aves em locais com menor sazonalidade climática –, as pressões de seleção sexual devem ser mais intensas e devem ter favorecido a evolução de características que reflitam a qualidade de potenciais parceiros sexuais, como ornamentos elaborados e cantos mais complexos, o que facilitaria a escolha de parceiro e o pareamento para reprodução (veja Catchpole 1982; Najar & Benedict 2019). De modo geral, apesar da complexidade do canto das aves ser um tópico muito investigado, poucos trabalhos se propuseram a determinar padrões de complexidade dos sinais acústicos para amplas escalas geográficas, e os resultados reportados até então são inconsistentes (Najar & Benedict 2019). Considerando tal cenário, nós investigamos os padrões de variação do canto do tiziu (Volatinia jacarina), uma pequena ave granívora que ocorre ao longo da região Neotropical, a qual se aloja em áreas abertas, como formações campestres e plantações, do México à Argentina (Rising 2020). Para testarmos as diferentes hipóteses, nós determinamos a relação entre as características do canto do tiziu, a latitude, a sazonalidade climática e a riqueza (número) de espécies de aves onde o tiziu ocorre. O canto do tiziu O canto do tiziu é monossilábico e notavelmente variável entre diferentes indivíduos, inclusive entre aqueles que ocupam uma mesma localidade (Fandiño-Mariño & Vielliard 2004). Espectrogramas de cantos de tizius (Volatinia jacarina) registrados em diferentes locais da área de ocorrência da espécie. Observe a notável variabilidade estrutural do canto de diferentes indivíduos. (a) Manuel Grosselet, (b) Jerome Fischer, (c) Pedro Têia e (d) Bernabe Lopez-Lanus disponibilizaram as gravações XC489743, XC207196, XC105631 e XC47146 na plataforma online de ciência cidadã Xeno-Canto, respectivamente. Para investigarmos o canto da espécie ao longo de sua distribuição, utilizamos gravações de bancos de dados online de projetos de ciência cidadã e de coleções audiovisuais. Consideramos cinco métricas acústicas para representar a complexidade do canto do tiziu: entropia, largura de banda de frequência, número de inflexões por segundo, número de componentes do canto e duração do canto (Benedict & Najar 2019; Crouch & Mason-Gamer 2019). Além disso, calculamos métricas adicionais do canto sob potencial pressão de seleção sexual: frequência mediana, proporção de vibratos do canto e taxa de canto (Linhart et al. 2012; Manica et al. 2014; Hill et al. 2015). Espectrograma e oscilograma do canto do tiziu (Volatinia jacarina) com indicações de características acústicas desse sinal. Rodrigo Dela Rosa disponibilizou a gravação XC70652 na plataforma online de ciência cidadã Xeno-Canto. Fundamentados nas hipóteses presentes na literatura científica, nossas expectativas eram de que o tiziu apresentasse cantos mais complexos em latitudes maiores, ambientes com maior sazonalidade climática e hábitats com menor número de espécies de aves potencialmente capazes de reduzir a disponibilidade do espaço acústico. Cantos mais simples em latitudes maiores Nossos resultados foram majoritariamente contrários à nossa expectativa inicial de cantos mais complexos em latitudes maiores. Para o hemisfério norte, nós observamos que o canto do tiziu teve menor número de inflexões por segundo e menor largura de banda de frequência em direção às latitudes maiores. Adicionalmente, para o hemisfério sul, a duração do canto do tiziu se correlacionou negativamente com a latitude. Entretanto, de acordo com nossas expectativas iniciais, o número de inflexões do canto aumentou com a latitude no hemisfério sul. Repare que diferentes métricas do canto variaram em direções opostas dentro do mesmo hemisfério e entre hemisférios, por exemplo, o número de inflexões por segundo e a duração do canto no hemisfério sul. Resultados contraditórios para diferentes métricas do canto também foram relatados em outros estudos (e.g., Tietze et al. 2015), o que vai de encontro com as expectativas de variação de complexidade do canto das aves baseadas nas hipóteses ecológicas e de seleção sexual. Cantos mais simples em ambientes mais sazonais e com menor riqueza de aves Considerando as hipóteses de seleção sexual, esperávamos cantos mais complexos em ambientes com maior sazonalidade climática (veja Botero et al. 2009). No entanto, de maneira oposta, encontramos que a duração e o número de componentes do canto do tiziu diminuíram em função do aumento da sazonalidade climática. Além disso, contrário ao previsto pelas hipóteses ecológicas, a complexidade do canto do tiziu, representada pelo número de inflexões por segundo, aumentou com a riqueza de espécies de aves. Em outras palavras, o tiziu produz cantos mais complexos onde coexiste com um maior número de outras espécies de aves potencialmente ocupando o espaço acústico disponível. Talvez, em tal cenário, seja benéfico ao tiziu comprimir informação acústica por unidade de tempo. Por fim, também observamos que a proporção de vibratos no canto do tiziu variou significativamente com a sazonalidade climática, o que indica que essa métrica do canto deve ser um parâmetro acústico importante sob pressão de seleção sexual nessa espécie. Conclusões Nosso estudo demonstrou que o canto do tiziu varia em função da latitude, da sazonalidade climática e da riqueza de espécies de aves. No entanto, nossos resultados são majoritariamente contrários às nossas expectativas iniciais fundamentadas nas hipóteses ecológicas e de seleção sexual presentes na literatura científica. Ao considerar os nossos resultados e os de outros estudos sobre a variação geográfica do canto das aves (Najar & Benedict 2019), destacamos que essas hipóteses não explicam por completo a variação de complexidade do canto para espécies que ocupam amplas escalas geográficas. Possivelmente, você poderia perguntar agora: quais fatores adicionais afetam a variação do canto de uma ave ao longo de sua distribuição? Estudos futuros que considerem mais espécies e outras variáveis (e.g., isolamento histórico de populações, comportamento migratório e parâmetros paleoclimáticos) desempenharão um papel crucial para entendermos melhor os padrões de evolução do canto das aves. Certamente, padrões fascinantes de variação do canto das aves ainda estão por ser relatados. A versão inglês desse texto está disponível no #theBOUblog. Para mais detalhes, confira:
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Edvaldo Silva-JrBiólogo interessado em ecologia comportamental, bioacústica e ornitologia Categories |